O sócio Guilherme Chambarelli escreveu o artigo “Os desafios da relação entre fisco e contribuinte no contexto da Web 3.0“, publicado na coluna Regulação e Novas Tecnologias do portal jurídico JOTA. Confira o artigo na íntegra abaixo.
O surgimento da tecnologia blockchain trouxe consigo uma mudança de comportamento na sociedade – ou ao menos uma parcela dela. Trocando em miúdos, blockchain nada mais é do que uma corrente de blocos que funciona como um registro de dados das transações, transmitida sem um agente intermediário e criptografada, sendo também comparada a um Livro-Razão.
Embora não seja a primeira criptomoeda que se tem registro, a criação do bitcoin foi o grande marco nesse ecossistema de inovação em torno da blockchain. Com ele, criou-se um sistema de pagamento eletrônico entre pessoas (peer-to-peer), sem terceiros intermediários e um ambiente com criptografia.
Além disso, mais recentemente, vimos também o advento da Web 3.0. Enquanto a Web 1.0, nos anos 1990, trazia um padrão estático, marcada pelo conteúdo que era oferecido a partir do sistema de arquivo do servidor, na Web 2.0 tivemos o destaque das redes sociais, onde a interação entre usuários é muito maior. Por sua vez, a Web 3.0 tem como princípio central, justamente, a descentralização.
Como conciliar essa tendência de descentralização com o dever de prestação de informações ao fisco?
Ciente do grande desafio de não só tributar, mas também de impor obrigações acessórias relativas às operações com criptoativos, a Receita Federal do Brasil manifestou seu primeiro entendimento sobre o tema quando da publicação do Perguntão 2017.
Na ocasião, a Receita entendeu que esses ativos digitais deveriam ser declarados na ficha “Outros bens” pelo seu respectivo custo de aquisição. Ao lado disso, afirmou que as operações deveriam ser tributadas pelo Imposto de Renda sobre o ganho de capital, nas alíquotas progressivas de 15% a 22,5%, observado o limite de isenção de R$ 35 mil sobre as operações no mesmo mês.
Por sua vez, o Banco Central do Brasil mantém o entendimento de que os criptoativos devem ser declarados na Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior quando o total de ativos (incluindo de outras espécies) no exterior for superior a US$ 1 milhão, mas pelo seu valor de mercado
Observa-se que, apesar da ausência de regulamentação específica nesse sentido, as orientações dos órgãos competentes sempre foram no sentido de o próprio administrado ter o dever de prestar as informações, ainda que por força da aplicação da norma geral.
A primeira regulamentação do tema surgiu com a edição da Instrução Normativa RFB nº 1.888/2019, que estabeleceu algumas obrigações acessórias para empresas sediadas no Brasil que atuam no segmento, bem como para os investidores residentes no país.
De acordo com a IN RFB nº 1.888/2019, a exchange de criptoativos domiciliada para fins tributários no Brasil fica obrigada à prestação de informações relativas às operações realizadas com esses ativos na sua plataforma.
Além disso, a pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil é obrigada à prestação das informações em relação às operações forem realizadas em exchange domiciliada no exterior e aquelas que não forem realizadas em exchange.
Posteriormente, em 2022, a Receita Federal reforçou seu entendimento no Perguntão 2022, mas criou um grupo de bens especialmente para as criptomoedas na DIRPF, com códigos específicos para o bitcoin, as altcoins, as stablecoins e as NFTs. Assim, não se declara mais na classe residual de “Outros bens”.
A bem da verdade, conforme já adiantamos, o que se tem é que, apesar da total falta de regulamentação da matéria, a Receita Federal vem buscando meios de tornar as operações com criptoativos minimamente rastreáveis, mas por iniciativa do próprio investidor.
No entanto, será que as medidas são de fato efetivas? Afinal de contas, se estamos diante de um público cujo perfil tende a defender a descentralização e a ausência de intermediários, será que essas pessoas têm a intenção de serem benevolentes para com a Receita Federal?
Parece que os desafios do fisco vão muito além do que a própria regulação em si. Seu papel deve ser de conciliador nessa relação da qual também é parte. É preciso conscientizar o investidor da importância de um bom diálogo, mas ciente de que isso é uma via de mão dupla.