
A Solução de Consulta COSIT nº 99.011, publicada em 9 de maio de 2024, aprofunda e reafirma um entendimento da Receita Federal que tem gerado controvérsia entre contribuintes, instituições acadêmicas e empresas brasileiras: a caracterização dos pagamentos feitos ao exterior para aquisição ou renovação de licenças de software como royalties sujeitos à retenção de Imposto de Renda na Fonte (IRRF), ainda que destinados ao uso exclusivo do usuário final e independentemente do grau de customização do programa.
A dúvida do consulente — um professor universitário — gira em torno de uma operação corriqueira: a compra de uma licença de software para fins acadêmicos, sem intenção de revenda ou comercialização. Em seu argumento, ele sustenta que, não havendo exploração comercial nem transferência de tecnologia, não haveria também fato gerador de IRRF sob a rubrica de royalties. O software, sendo utilizado exclusivamente para fins próprios, não configuraria remuneração de direitos autorais nos moldes exigidos pela Lei nº 4.506/1964.
A Receita, no entanto, discorda. Reforçando a interpretação já manifestada na Solução de Consulta COSIT nº 75/2023, o Fisco entende que todo licenciamento de software — mesmo aquele concedido ao usuário final — configura exploração de direito autoral e, portanto, se qualifica como royalty para fins de IRRF.
A Receita constrói seu raciocínio a partir da seguinte cadeia normativa:
O software é protegido pela Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998, art. 7º, XII), como obra do espírito.
Seu uso no Brasil exige contrato de licença (Lei nº 9.609/1998, art. 9º).
O pagamento por esse licenciamento corresponde à remuneração pela exploração de direitos autorais — o que se enquadra no conceito legal de “royalties” (Lei nº 4.506/1964, art. 22, alínea “d”), com alíquota de 15% de IRRF (ou 25%, se o beneficiário estiver em país com tributação favorecida).
A Receita ainda esclarece que a retenção realizada pela instituição financeira no percentual de 17,647% decorre da sistemática de “gross-up”, prevista no art. 786 do RIR/2018 — ou seja, quando o valor contratado é líquido de IR, o valor bruto precisa ser recalculado, majorando a base de cálculo para que o imposto seja retido por fora, sem afetar o valor final recebido pelo licenciante.
O consulente também invoca uma solução de consulta da 6ª Região Fiscal (SRRF06/Disit nº 6.014/2018), que afastava o IRRF sobre remessas destinadas à aquisição de software de prateleira para uso próprio. No entanto, a COSIT rejeita a aplicabilidade desse precedente, alegando que:
A referida solução se baseava em interpretação a contrario sensu da Solução de Divergência nº 18/2017, que tratava exclusivamente de licença de comercialização, e não de uso final;
A SD nº 18/2017 foi superada pela SC COSIT nº 75/2023, de conteúdo vinculante;
O entendimento consolidado é de que toda licença de software, inclusive de prateleira e sem personalização, caracteriza royalties — exceto quando o autor do software for o próprio recebedor da remuneração (situação que não envolve remessa internacional).
A COSIT ressalva, no entanto, que o entendimento pode ser afastado caso exista acordo de bitributação entre o Brasil e o país de domicílio do beneficiário. Nesse caso, prevalecem as cláusulas do tratado internacional, que podem prever alíquota reduzida, exclusão de incidência ou regra distinta para remunerações de licenciamento. A análise, portanto, deve ser caso a caso, e a simples leitura da legislação interna pode não ser suficiente para determinar o ônus tributário final.
Na ausência de tratado internacional, o pagamento feito por pessoa física ou jurídica brasileira a residente ou domiciliado no exterior, pela licença de uso de software (mesmo padrão, de prateleira ou em nuvem), será:
Tributado à alíquota de 15% de IRRF (ou 25%, em caso de país com tributação favorecida);
Sujeito ao reajuste de rendimento bruto (gross-up), majorando o custo final da operação;
Classificado como royalty, com base em interpretação extensiva da legislação autoral e fiscal.
Esse entendimento representa um alerta importante para pesquisadores, universidades, startups e profissionais que adquirem softwares no exterior para uso próprio. A simples natureza “não comercial” do uso não é suficiente para afastar a incidência tributária. O risco fiscal reside tanto na não retenção quanto na ausência de comprovação da operação para fins de dedutibilidade e compliance cambial.
O Brasil adota uma das interpretações mais amplas do conceito de royalties no contexto internacional, incluindo até mesmo licenças de software padronizado para uso pessoal ou institucional. O resultado prático é o encarecimento das soluções tecnológicas importadas e o aumento do risco tributário para quem presume, erroneamente, que a ausência de exploração econômica direta do software excluiria a incidência de IRRF.
Mais do que nunca, torna-se essencial realizar análise fiscal preventiva em cada contratação internacional de tecnologia. Na dúvida, a Receita presume royalty. E onde há royalty, há IRRF.
01/05/2025
Alana de Castro Barbosa
16/11/2022
Guilherme Chambarelli
06/03/2024
Guilherme Chambarelli