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Responsabilidade Civil das Plataformas Digitais: o novo tempo do Marco Civil da Internet

27/06/2025

Guilherme Chambarelli

Há momentos em que o Direito é convocado a deixar de ser apenas norma e tornar-se presença. Presença que protege, que regula e que se atualiza diante das mutações da realidade social. Foi exatamente esse o movimento promovido pelo Supremo Tribunal Federal ao reconhecer, com ineditismo e sensibilidade institucional, a inconstitucionalidade parcial e progressiva do artigo 19 do Marco Civil da Internet.

O ponto de partida: uma regra que se revelou insuficiente

O artigo 19 da Lei nº 12.965/2014, em sua redação original, estabelecia que provedores de aplicações de internet só poderiam ser responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos de terceiros após o descumprimento de ordem judicial específica. À época, a norma visava proteger a liberdade de expressão e evitar a censura privada — valores que continuam válidos. No entanto, a prática demonstrou que essa exigência, por vezes, opera como escudo à irresponsabilidade, especialmente diante de conteúdos que ferem frontalmente direitos fundamentais.

O STF, atento aos novos riscos do ambiente digital — como o uso coordenado de desinformação, discursos de ódio e redes de robôs — reconheceu que a regra geral do artigo 19 não oferece proteção adequada em cenários de ilicitudes graves ou de circulação massiva de conteúdos danosos. Assim, declarou sua inconstitucionalidade parcial e determinou nova interpretação conforme à Constituição.

O novo regime interpretativo: responsabilidade com dever de cuidado

A nova tese firmada pelo STF estabelece que os provedores de aplicações de internet:

  • Podem ser responsabilizados civilmente, mesmo sem ordem judicial, nos casos de conteúdos manifestamente ilícitos (como terrorismo, crimes contra crianças, discursos de ódio, misoginia, racismo e condutas antidemocráticas).

  • Devem agir com diligência para remover conteúdos em tempo razoável, sob pena de responderem por omissão, especialmente quando houver falha sistêmica.

  • São presumidamente responsáveis em casos de impulsionamentos pagos ou de redes artificiais de distribuição (como robôs), salvo se comprovarem medidas eficazes de prevenção e controle.

Além disso, há um avanço importante: a possibilidade de remoção extrajudicial de conteúdos em situações de reincidência (replicações de publicações já reconhecidas como ilícitas) e em casos de perfis inautênticos.

Efeitos modulados: segurança jurídica e apelo ao legislador

A decisão tem efeitos apenas prospectivos, protegendo a segurança jurídica dos atos passados. Ao mesmo tempo, o STF conclamou o Congresso Nacional a legislar sobre a matéria, para superar as lacunas do atual modelo normativo e oferecer soluções equilibradas para a convivência entre liberdade de expressão e proteção de direitos fundamentais no ambiente digital.

Implicações práticas: um novo padrão de atuação para as plataformas

As plataformas digitais — as chamadas big techs — passam a ter deveres concretos:

  • Estabelecer sistemas de notificação e resposta com devido processo;

  • Publicar relatórios anuais de transparência sobre conteúdos removidos e anúncios impulsionados;

  • Disponibilizar canais acessíveis de atendimento;

  • Manter representação legal no Brasil, com poderes suficientes para responder administrativa e judicialmente.

Conclusão: do silêncio permissivo à responsabilidade ativa

A decisão do STF inaugura um novo capítulo na regulação da internet brasileira. Em vez de uma neutralidade algorítmica que se omite, exige-se agora uma responsabilidade digital que se compromete com os valores constitucionais. A regra de ouro deixou de ser a inércia até ordem judicial, para se tornar a ação preventiva, diligente e proporcional.

O Marco Civil da Internet continua sendo um marco. Mas, como toda boa lei em uma democracia viva, precisa evoluir. O Supremo, sem usurpar o papel do Legislativo, apenas devolveu ao Direito sua missão: proteger as pessoas, especialmente nos lugares onde sua dignidade corre maior risco — inclusive na selva algorítmica das redes.

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