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A tributação da atividade de licenciamento ou cessão de direito de uso de software, tema de notória instabilidade jurídica, sofre nova inflexão interpretativa com a Solução de Consulta COSIT nº 120/2025. Em uma guinada que mais revela as tensões entre segurança jurídica e eficácia fiscal do que propriamente uma evolução dogmática coerente, a Receita Federal do Brasil (RFB) consolidou o entendimento de que receitas provenientes de softwares padronizados ou customizados em pequena extensão devem ser submetidas à presunção de 32% para fins de IRPJ e CSLL no regime do lucro presumido.

A decisão não surpreende quanto ao conteúdo, mas impõe uma reflexão densa quanto à forma e ao tempo de sua aplicação — matéria na qual o ordenamento, por mais que tente, ainda hesita entre os postulados da legalidade e as conveniências da administração.

A origem do problema: a ficção da neutralidade tecnológica

Historicamente, a distinção entre software “de prateleira” e software “por encomenda” desempenhou papel central na definição das incidências de ICMS e ISS. Esta dicotomia, inicialmente erigida com base em premissas técnico-contratuais (dar x fazer), passou a ancorar também a definição dos percentuais de presunção no IRPJ e na CSLL.

Com a jurisprudência do STF — em especial nas ADIs 1.945 e 5.659 — sinalizando a superação da referida distinção e consolidando o entendimento de que o licenciamento de software, ainda que padronizado, configura prestação de serviço sujeita ao ISS, a Receita Federal revê seus posicionamentos anteriores e reconhece que tais receitas não se equiparam mais à “venda de mercadoria”.

A nova presunção: 32% para IRPJ e CSLL

A Solução de Consulta COSIT nº 120/2025 confirma a adoção da alíquota de presunção de 32% tanto para o IRPJ quanto para a CSLL, nos termos dos arts. 15, §1º, III, “a”, e 20, I da Lei nº 9.249/1995.

A racionalidade da mudança repousa no novo enquadramento da atividade como prestação de serviço, afastando o uso das presunções de 8% e 12%, anteriormente aplicáveis às receitas de comercialização de bens (inclusive software não customizado). Trata-se de reconhecer que, mesmo em modelos padronizados, a operação empresarial não se esgota em uma cessão estática de bem intangível, mas envolve prestação continuada de suporte, atualizações, manutenção e infraestrutura tecnológica — atividades inegavelmente caracterizadas por esforço humano.

Segurança jurídica e modulação: aplicação prospectiva e vinculação coletiva

Diferentemente de um precedente judicial, a mutação de entendimento em sede de Solução de Consulta levanta legítima preocupação sobre sua aplicação retroativa. Aqui, a RFB afasta expressamente a incidência dos princípios da anterioridade anual (IRPJ) e nonagesimal (CSLL), por entender que não se trata de inovação legislativa, mas de alteração interpretativa.

Contudo, e aí reside o ponto de equilíbrio institucional, a própria Receita invoca o art. 26 da IN RFB nº 2.058/2021 e o art. 1º do Ato Declaratório Interpretativo nº 4/2022 para assegurar que o novo entendimento somente surtirá efeitos para fatos geradores ocorridos após sua publicação oficial (15/02/2023). Ainda que não derive da Constituição, trata-se de concretização administrativa do princípio da proteção da confiança — limitando o poder fiscalizatório retroativo e proporcionando estabilidade mínima ao contribuinte.

E mais: a solução vincula a própria administração tributária e se aplica, inclusive, aos contribuintes que não formularam consulta, desde que se encontrem em situação fática idêntica. Aqui, não se trata de prerrogativa individual, mas de um novo referencial normativo institucionalizado.

Atividades concomitantes: segregação obrigatória da receita

Outro ponto relevante confirmado pela COSIT nº 120/2025 diz respeito à obrigatoriedade de segregação das receitas por tipo de atividade exercida. Consoante o §2º do art. 15 da Lei nº 9.249/1995, a apuração deve ser feita com base na atividade específica, aplicando-se o respectivo percentual de presunção sobre a receita bruta auferida em cada uma.

A consequência lógica é que empresas que exploram tanto atividades de licenciamento de software quanto de, por exemplo, intermediação de negócios ou consultoria, deverão manter contabilidade segregada, sob pena de sofrer autuação por glosa da presunção mais favorável.

O papel das soluções de consulta na arquitetura da tributação contemporânea

Mais do que atos administrativos isolados, as soluções de consulta revelam o caráter evolutivo e dialógico da interpretação tributária. Não representam apenas resposta a um sujeito passivo, mas refletem, cada vez mais, uma política institucional da Receita Federal sobre os contornos aplicáveis à incidência de tributos federais.

A COSIT nº 120/2025, ao formalizar a viragem interpretativa, deixa nítido que o problema tributário não reside mais na tipologia do software, mas na natureza da atividade econômica desenvolvida. O modelo de negócio contemporâneo — ancorado em cloud computing, licenças SaaS e serviços de TI — exige um olhar funcional sobre a operação, superando a obsessão por categorias contratuais estanques.

Considerações finais

A mudança de entendimento consolidada na Solução de Consulta COSIT nº 120/2025 representa mais do que um ajuste técnico na apuração do lucro presumido: é a reafirmação de que a tributação deve se alinhar à realidade econômica subjacente às operações.

No entanto, ao reconhecer a mutabilidade dos referenciais interpretativos, reforça-se a necessidade de ferramentas jurídicas estáveis que assegurem previsibilidade ao contribuinte. O princípio da segurança jurídica, ainda que mitigado nos seus contornos formais, permanece como norte para o direito tributário em sua função regulatória e garantista.

Nesse cenário, é essencial que empresas de tecnologia e licenciamento de software revisitem sua estrutura contábil, tributária e contratual, de modo a compatibilizá-las com a nova leitura institucional da Receita Federal — sem perder de vista a complexidade dos modelos híbridos e a persistente zona de penumbra normativa em que ainda se movem.


Chambarelli Advogados atua estrategicamente na estruturação tributária de empresas de tecnologia, oferecendo segurança jurídica e planejamento fiscal eficaz para operações de licenciamento e desenvolvimento de software.

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No campo das incorporações imobiliárias, o tratamento fiscal das operações de permuta sempre foi objeto de tensionamento entre Fisco e contribuintes. Mais do que um conflito semântico entre “troca” e “venda”, o que se põe em questão é o reconhecimento — ou não — de receita tributável em hipóteses de ausência de ingresso financeiro imediato.

O problema ganha densidade no Regime Especial de Tributação (RET), previsto na Lei nº 10.931/2004, cuja sistemática de pagamento unificado mensal incide sobre a receita bruta da incorporação. A dúvida, que vinha sendo levada ao Judiciário e reiteradamente decidida contra a Fazenda Nacional, diz respeito à natureza dos imóveis recebidos em permuta: haveria ali receita bruta, renda ou lucro tributável?

A Solução de Consulta COSIT nº 124/2025, publicada em 30/07/2025, afirma de modo categórico que não.


Receita Federal confirma: permuta com imóveis não gera receita tributável no RET

Com base nos Pareceres SEI nº 8.694/2021/ME e nº 13.369/2021/ME, aprovados pela PGFN e respaldados em jurisprudência reiterada do STJ (como nos REsp 1.928.362/SC e REsp 1.921.222/SC), a Receita Federal sedimenta a seguinte posição:

“O valor do imóvel recebido pela incorporadora nas operações de permuta imobiliária (somente com imóveis) não é considerado receita bruta para fins do pagamento mensal unificado a que está sujeita a pessoa jurídica submetida ao RET.”

A ressalva permanece, evidentemente, para as torna — parcelas pagas em dinheiro como compensação por eventual diferença de valores —, as quais devem ser oferecidas à tributação.


A fundamentação jurídica: interpretação do art. 533 do Código Civil e os limites da analogia tributária

O centro de gravidade da discussão recai sobre a equivocada analogia entre permuta e compra e venda. A Receita acolhe a tese, hoje pacífica nos Tribunais Superiores, de que:

  • O art. 533 do Código Civil autoriza a aplicação das regras da compra e venda somente quando compatíveis, o que não implica equivalência automática no plano tributário;

  • A permuta não gera receita, faturamento ou lucro, salvo na presença de torna;

  • Logo, não há base de incidência para IRPJ, CSLL, PIS e COFINS — nem mesmo no regime do RET, cuja sistemática não pode prescindir da noção de receita efetiva.

A fundamentação encontra amparo direto no art. 19, § 9º, da Lei nº 10.522/2002, que permite a extensão da dispensa de recorrer a temas correlatos à jurisprudência consolidada — base normativa do Despacho PGFN nº 167/2022, que é a espinha dorsal da resposta dada na SC nº 124/2025.


Reflexos práticos: segurança jurídica e exclusão da exigência fiscal

Com essa manifestação formal, a Receita Federal não apenas reconhece a inaplicabilidade da tributação sobre a permuta sem torna, como também vincula sua atuação fiscal ao entendimento já adotado pela PGFN, proibindo autuações sobre o tema e afastando a incidência de juros e multas nos termos da IN RFB nº 2.058/2021.

A interpretação reafirma também a diretriz da Portaria PGFN nº 502/2016, que consagra a inércia da Fazenda Nacional em face de jurisprudência consolidada, promovendo um ciclo virtuoso de coerência institucional e previsibilidade jurídica.


Considerações finais: a vitória da substância sobre a forma

A SC COSIT nº 124/2025 reflete mais do que um posicionamento técnico da Receita Federal: é a consolidação de um paradigma. Um modelo de interpretação que prioriza a substância econômica da operação em detrimento da forma contratual. Em tempos de ativismo arrecadatório e ampliação da base de cálculo tributária por presunção ou ficção, a posição oficial da Receita representa um raro momento de aderência à realidade do setor imobiliário.

Empresas optantes pelo RET passam a contar com um arcabouço normativo sólido e seguro para afastar exigências indevidas. A clareza quanto à não tributação das permutas sem torna resgata o espírito do regime especial: fomentar a atividade imobiliária sem penalizar a neutralidade econômica das trocas patrimoniais.

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O sócio Guilherme Chambarelli teve artigo publicado no JOTA com uma análise crítica sobre o IOF — Imposto sobre Operações Financeiras — e a instabilidade normativa que o caracteriza. Intitulado IOF e o ‘bota casaco, tira casaco’, o texto explora como o imposto, originalmente concebido com função regulatória, tem sido reiteradamente utilizado de forma arbitrária, comprometendo sua racionalidade jurídica e previsibilidade.

A publicação evidencia os impactos dessa volatilidade na segurança jurídica dos contribuintes e no ambiente de negócios, além de propor uma reflexão sobre os limites do voluntarismo fiscal na política tributária brasileira.

A leitura é indispensável para quem atua com planejamento financeiro, tributário e regulatório.


Poucas espécies tributárias exemplificam com tanta nitidez a tensão entre funcionalidade normativa e voluntarismo político quanto o IOF — Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários.

Embora nascido com pretensões regulatórias, como ferramenta de intervenção estatal nos mercados, o IOF tem sido constantemente manipulado em função de objetivos arrecadatórios imediatistas, transformando-se num instrumento à mercê da conjuntura fiscal. Em 2025, esse fenômeno assumiu contornos coreográficos, e o que se viu foi o Poder Público ensaiando um espetáculo descoordenado — típico de quem entendeu mal a lição do sr. Miyagi.

Sim, refiro-me à célebre cena de Karatê Kid: “bota casaco, tira casaco”. O problema é que, no Direito Tributário, a repetição sem método não forma o contribuinte, apenas o desgasta. Não há sabedoria oculta quando o Estado impõe obrigações fiscais em uma semana e as desfaz na outra. Há apenas desequilíbrio institucional e erosão da confiança.

O vaivém normativo de 2025: IOF como instrumento de improviso

No dia 11 de junho, o Poder Executivo editou o Decreto 12.499, promovendo uma reestruturação abrangente das alíquotas do IOF. Alegava-se, na exposição de motivos, a intenção de “harmonizar alíquotas” e “promover maior neutralidade tributária”, em prol da política monetária e da ampliação do investimento estrangeiro.

Não se passaram duas semanas e o Congresso Nacional, invocando o art. 49, V, da Constituição, aprovou o Decreto Legislativo 176/2025, sustando os efeitos da norma presidencial. O argumento parlamentar? Desvio de finalidade: o Executivo teria utilizado o tributo com propósito arrecadatório, esvaziando sua natureza extrafiscal.

Submetida ao Supremo Tribunal Federal, a controvérsia desaguou na ADC 96 e nas ADIs 7827 e 7839. Em 16 de julho, o ministro Alexandre de Moraes restabeleceu parcialmente o decreto presidencial, reconhecendo a regularidade da majoração das alíquotas, exceto no ponto em que se tentou incluir na incidência do IOF as chamadas operações de risco sacado.

IOF e sua função extrafiscal: um manto constitucional que não comporta improvisos

O art. 153, §1º, da Constituição Federal permite ao Poder Executivo alterar as alíquotas do IOF por decreto, desde que respeitados os limites legais. Trata-se de concessão excepcional de competência tributária, fundada na natureza extrafiscal do imposto: o IOF não é concebido como tributo de arrecadação, mas como instrumento de política monetária, cambial e de regulação de crédito.

Não se trata de formalismo. Essa função específica é o que justifica a mitigação dos princípios da legalidade e da anterioridade, normalmente rígidos em matéria tributária. Retirar do IOF sua vocação regulatória equivale a despir o tributo de sua legitimidade e, por consequência, minar a constitucionalidade de sua disciplina excepcional.

Ao reconhecer a validade do Decreto 12.499/2025, o STF entendeu que a majoração das alíquotas, em si, não configurou desvio de finalidade. O Ministério da Fazenda apresentou justificativas técnicas para cada alteração: desde a desoneração cambial para remessas de investimento estrangeiro direto, até a tentativa de disciplinar os FIDCs, instrumentos usados com crescente frequência como veículos de elisão tributária.

A tentativa de tributar o que a lei não alcança: “risco sacado” e o ponto fora da curva

Mas a tentação criativa foi longe demais. O Decreto 12.499/2025, ao alterar o art. 7º do Decreto 6.306/2007, passou a equiparar as operações de “risco sacado” às operações de crédito, instituindo a sua tributação pelo IOF. Eis o passo em falso na coreografia normativa.

As chamadas operações de risco sacado, como bem reconheceu o próprio STF, não configuram operações de crédito nos termos legais. Tratam-se de adiantamentos comerciais com cessão de recebíveis, em que não há assunção de dívida por instituição financeira — não há mútuo, não há financiamento, não há relação bancária direta.

Ao tributar essa operação via decreto, o Poder Executivo extrapolou sua competência. Criou, por ato infralegal, uma nova hipótese de incidência tributária, sem previsão legal específica. Aqui, como bem decidiu o STF, houve ofensa frontal ao princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF). Nem mesmo o IOF, com sua elasticidade funcional, pode ter seu fato gerador expandido por decreto.

Segurança jurídica e a lição não aprendida

O caso do “risco sacado” revela o que há de mais preocupante na forma como o Estado lida com o sistema tributário: a inversão da ordem hierárquica das normas e a instrumentalização do contribuinte como variável de ajuste fiscal. A cada nova alteração do IOF por decreto — bota casaco, tira casaco — o investidor estrangeiro hesita, o mercado recua e o contribuinte se retrai.

E quando o Estado força a analogia onde não cabe — como no caso do risco sacado — o que se tem não é inovação, mas usurpação normativa. A estabilidade tributária, já frágil, se desfaz no gesto impulsivo de quem confunde regulação com arrecadação.

Considerações finais: o casaco não é tática de guerra fiscal

A história recente do IOF não é apenas um caso de vaivém normativo. É um sintoma. Um sintoma de como o aparato estatal ainda resiste em compreender que o Direito Tributário é campo de limites, e não de experimentações.

Mas a lição persiste: não se regula mercado com improviso. E o contribuinte não é boneco de treinamento. Entre bota casaco e tira casaco, o que está em jogo é a credibilidade do Estado e a solidez do sistema tributário.

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A Solução de Consulta COSIT nº 42, de 2024, escancara o que há muito tempo se sabia, mas poucos queriam enfrentar: consultas médicas prestadas em regime de cessão de mão de obra não são compatíveis com o Simples Nacional e, mais do que isso, ensejam a retenção de 11% de INSS pela contratante.

Sob uma roupagem técnica, o entendimento consolida uma leitura fiscal que rompe com qualquer tentativa de blindagem tributária por meio de estruturações contratuais artificiais. O que se tem, em essência, é a recusa da Receita Federal em aceitar o argumento de que a ausência de subordinação direta inviabiliza o enquadramento como cessão de mão de obra. Não inviabiliza. Nunca inviabilizou.


Cessão de mão de obra: muito além da subordinação

O ponto central do entendimento reside no conceito legal de cessão de mão de obra, definido pelo art. 31, §3º da Lei nº 8.212/1991 e reiterado por múltiplos normativos infralegais (IN RFB nº 2.110/2022, Decreto nº 3.048/1999). De acordo com a Receita:

“Cessão de mão de obra é a colocação à disposição da empresa contratante, em suas dependências ou nas de terceiros, de trabalhadores que realizem serviços contínuos, relacionados ou não com sua atividade fim, quaisquer que sejam a natureza e a forma de contratação.”

O termo “colocação à disposição” não exige transferência de poder de direção. Basta que o profissional atue de forma não eventual e esteja disponível ao contratante, em local físico controlado por este, para que se configure o vínculo tributário que legitima a retenção de 11% sobre o valor da nota fiscal.


Consultas médicas sob suspeita: entre o atendimento e a fiscalização

A situação analisada pela Receita envolve consultas médicas agendadas, realizadas dentro da estrutura da contratante, com materiais e espaço físico fornecidos por esta, ainda que o profissional mantenha sua autonomia técnica.

Nesse cenário, não importa o discurso contratual. Se, na prática, há um serviço contínuo prestado em dependências da contratante e com controle de agenda, a Receita considera configurada a cessão de mão de obra — e exige a retenção previdenciária prevista no art. 31 da Lei nº 8.212/1991.


A ilusão do Simples Nacional: vedação e exclusão

A consequência mais aguda do entendimento fiscal está na incompatibilidade entre esse tipo de estrutura e a opção pelo Simples Nacional.

A Receita é clara: empresas que prestam serviços de saúde mediante cessão de mão de obra não podem ser optantes do Simples, salvo se a atividade estiver incluída no Anexo IV da LC nº 123/2006 — o que não é o caso de consultas médicas, tributadas pelo Anexo III.

Assim, mesmo que regularmente inscrita, a empresa prestadora deve ser excluída do regime simplificado. E a retenção do INSS passa a ser obrigatória apenas após a exclusão formal, nos termos do art. 167 da IN RFB nº 2.110/2022.


O problema da forma sobre a substância: contratos não blindam o fato gerador

O que está em curso é a afirmação da supremacia da realidade sobre a ficção contratual. Ainda que o contrato invoque autonomia, ausência de subordinação ou natureza eventual, o que interessa ao Fisco é a materialidade do serviço prestado: se há atendimento médico regular em estrutura fornecida pela tomadora, com agendamento recorrente e continuidade, há cessão de mão de obra.

A tentativa de blindagem por meio de CNPJs individuais, contratos de prestação de serviços e cláusulas de responsabilidade técnica não resiste à análise dos elementos objetivos de configuração da relação.


Impactos práticos: riscos e providências para contratantes e prestadores

Para contratantes (tomadores de serviços médicos):

  • Avaliar se os contratos em vigor se enquadram como cessão de mão de obra;

  • Exigir o desenquadramento do Simples por parte do prestador, se for o caso;

  • Recolher a retenção de INSS apenas após a exclusão do Simples, sob pena de glosa ou dupla tributação.

Para prestadores (clínicas, cooperativas e empresas médicas):

  • Reavaliar sua estrutura de contratação e verificar a compatibilidade com o Simples Nacional;

  • Planejar a migração para regimes como o Lucro Presumido, considerando a carga tributária real;

  • Evitar estruturas artificiais que simulem autonomia onde há dependência prática.


Conclusão: a Receita fechou o cerco — e não há margem para ingenuidade

A Solução de Consulta nº 42/2024 representa mais do que uma resposta fiscal: ela dá contornos normativos a um movimento de endurecimento da Receita Federal contra terceirizações simuladas na área da saúde. Não se trata de um novo tributo ou de mudança legislativa, mas da aplicação firme da legislação existente sob o crivo da realidade dos fatos.

A zona de conforto contratual se dissolveu. O planejamento tributário precisa deixar de ser um exercício de redação criativa e passar a ser, de fato, uma estratégia de conformidade, análise de risco e gestão de contingência.

No Chambarelli Advogados, acompanhamos de perto os desdobramentos regulatórios que afetam o setor de saúde. Se sua empresa atua com serviços médicos terceirizados, é hora de reavaliar o modelo jurídico-tributário adotado. A fronteira entre economia lícita e risco fiscal nunca foi tão estreita.

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A expressão holding patrimonial já transcendeu o jargão dos planejadores sucessórios e hoje figura no vocabulário de famílias empresárias, investidores e empreendedores atentos aos riscos que gravitam em torno da propriedade direta de bens. O tema ganhou protagonismo não apenas por razões tributárias — que, aliás, merecem ser desmistificadas —, mas sobretudo por aquilo que carrega de racionalidade organizacional, blindagem patrimonial e engenharia sucessória. Neste artigo, examinamos com precisão técnica o conceito de holding patrimonial, seu funcionamento jurídico, as vantagens efetivas (e os mitos que lhe foram imputados) e os critérios que devem orientar sua constituição.

O que é uma holding patrimonial?

A holding patrimonial é uma pessoa jurídica constituída com o propósito principal de concentrar bens imóveis, móveis e ativos financeiros de uma ou mais pessoas físicas. Trata-se, portanto, de uma sociedade cujo objeto social não é explorar atividade empresarial produtiva, mas sim administrar um patrimônio.

Sua gênese está na cisão entre a titularidade jurídica dos bens e sua fruição econômica. Ao transferir seus imóveis, ações, quotas e outros ativos para uma holding, o indivíduo despersonaliza a propriedade e passa a controlar os bens por meio de sua posição societária — geralmente com mecanismos de governança e cláusulas estatutárias que regulam o uso, a sucessão e a alienação dos ativos.

Como funciona uma holding patrimonial?

A constituição da holding exige o mesmo rito jurídico de qualquer sociedade: elaboração de contrato ou estatuto social, definição de objeto, capital social, quadro societário, registro na Junta Comercial e obtenção de CNPJ. Contudo, seu conteúdo carrega especificidades. A redação do contrato social de uma holding patrimonial costuma incluir cláusulas de usufruto, incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade dos bens — com vistas a resguardar os interesses do instituidor e de seus sucessores.

O funcionamento da holding não implica, necessariamente, alteração da fruição dos bens. O instituidor pode continuar residindo no imóvel transferido à holding ou recebendo aluguéis de imóveis locados, desde que estabelecido contratualmente. A gestão dos bens passa a ser exercida pela sociedade, que pode também incorporar regras de governança familiar, como quóruns qualificados, conselhos consultivos ou veto de determinados atos pelos fundadores.

Vantagens jurídicas e econômicas

1. Planejamento sucessório estruturado

A holding patrimonial permite antecipar a sucessão hereditária com racionalidade e segurança. A doação de quotas com reserva de usufruto viabiliza a transmissão do patrimônio em vida, evitando a abertura de inventário e reduzindo litígios entre herdeiros.

2. Redução de custos com ITCMD

A tributação da doação das quotas pode ser planejada para mitigar o impacto do ITCMD, especialmente em estados que ainda adotam alíquotas fixas. Além disso, é possível parcelar o pagamento e organizar financeiramente os herdeiros.

3. Blindagem patrimonial relativa

Ao concentrar os bens em pessoa jurídica, o patrimônio se distancia da pessoa física e, por consequência, de execuções ou dívidas pessoais — respeitado o princípio da autonomia patrimonial. Importa lembrar que a proteção não é absoluta: fraudes e abusos serão, como é de se esperar, reprimidos pela desconsideração da personalidade jurídica.

4. Organização da gestão dos bens

Com a centralização dos ativos, é possível definir critérios objetivos para administração e uso dos bens, evitando conflitos futuros. A holding funciona como um regramento contratual estável que substitui a insegurança das relações informais.

5. Possíveis vantagens fiscais

É necessário cautela. Embora muitas vezes anunciada como ferramenta de economia fiscal, a holding patrimonial pode, em certos casos, ensejar majoração tributária — sobretudo quando há locação de imóveis com tributação via lucro presumido. Cada caso exige simulação e análise técnica detida.

Quando vale a pena constituir uma holding patrimonial?

A resposta não é binária — e tampouco deve ser pautada por fórmulas prontas replicadas em massa por consultorias oportunistas. A constituição de uma holding patrimonial vale a pena quando:

  • Existe um patrimônio relevante, passível de sucessão organizada (imóveis, participações societárias, ativos financeiros);

  • A família deseja evitar o inventário judicial e conflitos entre herdeiros;

  • Há preocupação com proteção patrimonial em caso de divórcios, dívidas ou falecimentos inesperados;

  • O perfil dos ativos permite ganho fiscal ou ao menos neutralidade tributária;

  • Há desejo de instituir governança intergeracional, com regras claras de deliberação, administração e sucessão;

  • O custo de manutenção societária é justificável frente ao ganho jurídico e organizacional.

Cautelas e riscos

A banalização da holding patrimonial como produto pronto tem levado a estruturas artificiais, sem aderência à realidade econômica, ensejando autuações fiscais, conflitos societários e perda de eficiência. Não basta transferir imóveis para uma empresa: é necessário construir uma estrutura legítima, com propósito, governança, coerência contábil e aderência legal. É o caso clássico em que o Direito deve ser ferramenta de organização, não de simulação.


Conclusão

A holding patrimonial é mais do que uma estrutura jurídica: é um instrumento de racionalização do patrimônio familiar. Desde que bem concebida, ela não apenas antecipa a sucessão, mas confere ordem, previsibilidade e segurança jurídica a relações que, na ausência de regras, seriam reféns da desordem emocional. Entretanto, como toda ferramenta poderosa, deve ser usada com técnica, propósito e responsabilidade. A ilusão da economia fiscal não pode suplantar o que a holding verdadeiramente representa: uma arquitetura jurídica de longo prazo.

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O planejamento tributário envolvendo a aquisição de empresas com saldo de prejuízos fiscais acumulados é uma prática recorrente em reorganizações societárias — e, também, um dos pontos de maior tensão entre contribuintes e o Fisco. A Solução de Consulta COSIT nº 116/2025, de 22 de julho de 2025, reitera e aprofunda essa tensão: reafirma a impossibilidade de compensação de prejuízos fiscais e base de cálculo negativa da CSLL quando houver, cumulativamente, alteração do controle societário e mudança do ramo de atividade.

O parecer da Receita Federal não apenas ratifica o entendimento do art. 32 do Decreto-Lei nº 2.341/87 e do art. 584 do RIR/2018, como também estende expressamente a vedação à utilização desses créditos em transações tributárias.


O que motivou a Solução de Consulta?

A consulente, optante pelo lucro real, possuía saldo de prejuízo fiscal e base negativa da CSLL acumulados. Diante de débitos inscritos em dívida ativa, buscava aderir a programas de transação fiscal que permitem o uso desses créditos para abatimento.

No entanto, a empresa havia sofrido duas modificações relevantes:

  1. Alteração do objeto social: deixou de exercer atividade industrial e passou a atuar exclusivamente como comerciante.

  2. Modificação societária: saída do sócio majoritário e concentração da totalidade das quotas no sócio remanescente.


Entendimento da Receita: os dois critérios cumulativos

A Receita confirmou o seguinte:

 1. Mudança de ramo de atividade

Mesmo que a atividade comercial já constasse do objeto social anterior, a exclusão da atividade industrial e a modificação no CNAE (de indústria de transformação para comércio varejista) configuram mudança substancial do ramo de atividade.

“Não se trata de ajuste formal, mas de transformação da natureza econômica da sociedade.”
— COSIT nº 116/2025

 2. Controle societário

A Receita entendeu que a simples saída do sócio majoritário não configura alteração de controle societário, uma vez que não houve ingresso de novo sócio ou entidade externa que pudesse se beneficiar do prejuízo acumulado.

Ou seja, não houve sucessão empresarial ou aquisição abusiva. O sócio remanescente já integrava a sociedade e não pode ser equiparado a um terceiro estranho ao histórico econômico do prejuízo.


Impacto mais severo: impossibilidade de uso em transação tributária

O ponto mais sensível do entendimento está na conclusão de que a vedação à compensação se estende para além do lucro real. Mesmo nas transações tributárias da PGFN — que possuem regras próprias e permitem abatimento de dívidas com base nesses créditos — a Receita entende que os créditos baixados na Parte B do e-Lalur e do e-Lacs deixam de existir juridicamente.

Esse ponto é reforçado pela leitura do §7º do art. 11 da Lei nº 13.988/2020, que exige que os créditos de prejuízo fiscal utilizados na transação estejam “apurados e declarados à RFB”. Se eles são baixados do sistema, não podem ser utilizados em hipótese alguma.


Riscos e consequências para operações societárias

A Solução de Consulta COSIT nº 116/2025 confirma a rigidez interpretativa da Receita sobre o art. 32 do DL 2.341/87. Isso gera efeitos práticos relevantes para operações como:

  • Fusões e aquisições de empresas inativas com saldo de prejuízos fiscais;

  • Transformações de objeto social com reestruturação societária;

  • Recuperações judiciais que envolvam alteração no CNAE e entrada de novos investidores;

  • Planejamentos envolvendo uso de prejuízos em controladas ou coligadas.

“O Fisco não admite o uso do prejuízo sem vínculo econômico legítimo com a sua formação. A forma contratual, se destituída de substância, será ignorada.”
— Interpretação sistemática da EM nº 169/1987 (fundamento da norma)


Como mitigar riscos e estruturar com segurança?

A jurisprudência do CARF já reconheceu que a substância econômica das operações é elemento essencial para legitimar o uso de prejuízos acumulados. Diante disso, o contribuinte deve:

  1. Avaliar os efeitos fiscais da alteração do CNAE e do objeto social;

  2. Evitar aquisições com objetivo principal de aproveitamento do prejuízo;

  3. Manter comprovação robusta da continuidade operacional da empresa;

  4. Formalizar a ausência de modificação no controle, com ata, contratos e histórico de gestão;

  5. Verificar e registrar corretamente os créditos na Parte B do e-Lalur e do e-Lacs;

  6. Consultar preventivamente a RFB sempre que houver dúvidas jurídicas relevantes.


Conclusão

A Solução de Consulta COSIT nº 116/2025 explicita, com clareza, que o aproveitamento de prejuízos fiscais e base negativa da CSLL não é automático nem irrestrito. Depende de continuidade econômica, identidade societária e histórico legítimo da formação do crédito.

A tentativa de aproveitar prejuízos acumulados em contextos de transformação societária e reconfiguração operacional sem observar os limites normativos configura risco jurídico real — inclusive de autuações milionárias, glosas retroativas e questionamentos em eventuais recuperações judiciais.

Mais do que conhecer as regras, é preciso estruturar o contrato, a operação e a documentação sob a lógica do compliance tributário estratégico. O que está em jogo não é apenas o direito ao crédito, mas a credibilidade de toda a reestruturação empresarial.

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A ausência de governança corporativa em empresas familiares não é apenas um risco futuro — é uma fragilidade presente. Em estruturas fundadas sobre vínculos afetivos e decisões informais, o crescimento costuma expor um dilema: ou profissionaliza-se a gestão, ou compromete-se a perenidade.

Ao contrário da crença popular, governança não é sinônimo de burocracia ou de fórmulas importadas do mercado de capitais. Governança, no universo da empresa familiar, é um instrumento de clareza institucional, blindagem patrimonial e preservação das relações pessoais.

Este artigo propõe uma introdução prática à governança corporativa aplicada às empresas familiares, com foco jurídico e estratégico, mostrando por onde começar — e por que o início é urgente.


A crise da informalidade: quando a empresa ultrapassa a família

É comum que empresas familiares nasçam do esforço empreendedor de uma ou duas gerações, sustentadas pela confiança interpessoal e pelo poder de decisão concentrado. O problema é que o que antes era força vira armadilha.

Riscos típicos de estruturas sem governança:

  • Decisões unilaterais sem consulta ou transparência;

  • Confusão entre patrimônio pessoal e empresarial;

  • Ausência de critérios objetivos de remuneração, sucessão ou entrada de novos familiares;

  • Conflitos entre sócios que acabam judicializados (ou pior, não ditos);

  • Patrimônio comprometido por dívidas ou disputas internas.

Governança, neste cenário, não é acessório — é condição de continuidade.


O ponto de partida: formalização e distinção de papéis

A implementação de governança corporativa deve começar pela separação entre família, propriedade e gestão. Esse é o primeiro movimento que confere institucionalidade ao negócio.

1. Acordo de sócios

Documento essencial que define regras para:

  • Deliberações e quóruns;

  • Entrada e saída de sócios;

  • Regras de sucessão e herança;

  • Distribuição de lucros;

  • Cláusulas de saída (tag along, drag along, put e call).

“O acordo de sócios é o pacto que permite que os laços de sangue não se convertam em litígios judiciais.”

2. Conselho de administração ou conselho consultivo

Mesmo que informal no início, é essencial criar uma instância que:

  • Delibere com racionalidade estratégica;

  • Reduza o personalismo das decisões;

  • Registre atas, deliberações e responsabilidades;

  • Profissionalize o processo decisório, ainda que sem romper o protagonismo da família fundadora.

3. Acordo de família

Documento extracontratual que define valores, diretrizes e limites para os membros familiares, com temas como:

  • Quem pode trabalhar na empresa;

  • Política de dividendos;

  • Conflito de interesses;

  • Papel de cônjuges e herdeiros.


Sucessão: o tabu jurídico que destrói empresas

No Brasil, mais de 70% das empresas familiares não chegam à terceira geração. E o motivo não é apenas falta de inovação ou mercado — é falta de sucessão planejada.

Uma governança bem estruturada deve tratar da sucessão com antecedência e formalismo. Os instrumentos jurídicos mais eficazes são:

  • Holding familiar com acordo de quotistas;

  • Testamento em sintonia com o acordo de sócios;

  • Cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade para proteção patrimonial;

  • Protocolos de transição de gestão com regras de avaliação e preparo do(s) sucessor(es).

“A sucessão não é um evento — é um processo. E processo sem regra vira tragédia.”


Blindagem e perpetuidade: quando o jurídico sustenta a longevidade

Governança também é escudo. Estruturas familiares frágeis são vulneráveis a:

  • Cônjuges e ex-cônjuges de sócios;

  • Herdeiros despreparados ou desinteressados;

  • Sócios minoritários insatisfeitos;

  • Credores que buscam atingir o patrimônio pessoal;

  • Conflitos não resolvidos que eclodem em processos judiciais ou dissoluções societárias forçadas.

A criação de uma holding patrimonial, com cláusulas de controle, regras sucessórias e mecanismos de governança, permite que a empresa deixe de ser “do fulano” e passe a ser uma instituição com identidade própria.


Conclusão: de legado afetivo a estrutura institucional

Governança corporativa não é sobre perder controle — é sobre não perder o que se construiu. O fundador que teme o “engessamento” da empresa precisa compreender que as regras certas não sufocam a liberdade: elas protegem a continuidade.

Empresas familiares que prosperam são aquelas que compreendem que o afeto precisa ser protegido por estrutura. E que, entre a confiança e a formalização, há espaço para ambas — desde que com técnica e propósito.

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A moderna arquitetura empresarial já não admite estruturas fundadas exclusivamente na hierarquia ou em modelos de remuneração tradicionais. Em especial nos ecossistemas de inovação, a retenção de talentos-chave depende menos de bônus de curto prazo e mais de mecanismos jurídicos capazes de integrar o colaborador à lógica de longo prazo da empresa. É nesse contexto que vesting, cliff e equity se destacam — não como artifícios contratuais, mas como instrumentos jurídicos de governança estratégica.

Neste artigo, examinamos como esses institutos operam, suas implicações societárias e tributárias, e quais os cuidados estruturais indispensáveis para sua validade e eficácia, à luz do ordenamento brasileiro.


O vesting como tradução jurídica de compromisso com o futuro

O termo vesting, importado do direito anglo-saxão, refere-se ao direito progressivo de aquisição de participação societária (equity), condicionado a determinados marcos de tempo ou performance.

No Brasil, o vesting é implementado usualmente por meio de:

  • Contrato de promessa de cessão de quotas ou ações;

  • Contrato de opção de compra (call option);

  • Acordo de sócios com cláusulas de reverse vesting (com penalidades por saída antecipada).

O ponto nevrálgico está em que o vesting não opera ex tunc. Ou seja: o direito à participação se consolida apenas após o cumprimento das condições acordadas. Até lá, o beneficiário não é sócio e não participa das deliberações sociais.

O vesting deve ser tratado como promessa — não como atribuição imediata. Sua força reside na confiança jurídica de que o tempo cria pertencimento.


Cliff: o marco de não retorno

O cliff é uma cláusula acessória ao vesting que estabelece um prazo mínimo antes que qualquer participação seja adquirida. Funciona como uma barreira de comprometimento: se o colaborador sair antes do cliff, nada recebe.

Exemplo clássico:

  • Vesting de 4 anos com cliff de 12 meses → só há aquisição de 25% da equity após o primeiro ano. A partir daí, o restante é adquirido proporcionalmente.

Essa lógica é especialmente útil para:

  • Reduzir rotatividade nos primeiros meses;

  • Filtrar colaboradores por fit cultural;

  • Evitar a diluição precoce e improdutiva do capital social.

Juridicamente, o cliff exige que não haja constituição antecipada de direito, sob pena de caracterização como doação ou remuneração disfarçada — com efeitos tributários indesejáveis.


Equity: participação real ou promessa simbólica?

O termo equity, ainda que amplamente utilizado em ambientes de startups, deve ser juridicamente traduzido. No Brasil, os principais instrumentos são:

  • Cessão de quotas ou ações: exige alteração contratual e registro em Junta Comercial ou na CVM (no caso de S.A.);

  • Contrato de opção de compra (Call Option): o mais utilizado, pois permite condicionar a aquisição e diferir a titularidade até o momento da concretização.

A promessa de equity sem base contratual válida é marketing — não governança.

Importante: equity não é bônus. A promessa de participação deve respeitar a lógica societária, sob pena de caracterização como relação de emprego, disfarce remuneratório ou simulação contratual.


Cuidados jurídicos e riscos comuns

  1. Ausência de formalização: verbalizações ou documentos genéricos sobre “percentual prometido” são juridicamente frágeis. Vesting exige contrato escrito e cláusulas objetivas.

  2. Inexistência de contraprestação clara: sem vínculo com performance, tempo ou entrega, o fisco pode interpretar a operação como doação ou remuneração.

  3. Não alinhamento com o acordo de sócios: é necessário que o vesting se integre às regras de tag along, drag along, lock-up, saída, e deadlock, evitando conflitos societários futuros.

  4. Diluição indevida de controle: concessões mal planejadas de equity podem gerar perda de controle societário ou atritos com investidores.


Conclusão: governança contratual como diferencial competitivo

Vesting, cliff e equity são expressões jurídicas da confiança empresarial. Sua função não é apenas reter talentos, mas alinhar os interesses individuais aos objetivos estratégicos da companhia, criando uma lógica de pertencimento e mérito.

Contudo, sua eficácia depende da engenharia contratual. Não basta usar o jargão do mercado. É preciso dar densidade jurídica à estrutura, garantir segurança nas relações e blindar a empresa de litígios trabalhistas, tributários ou societários.

Em tempos de capital humano escasso, o jurídico que sabe estruturar estratégias de equity é peça-chave na engrenagem da empresa vencedora.

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A pejotização, como prática de contratação por meio de pessoas jurídicas em substituição ao vínculo celetista, ocupa hoje posição central no contencioso tributário e trabalhista brasileiro. A ascensão da economia digital e a reconfiguração das relações laborais acirraram o debate, e o que antes era visto como “otimização fiscal” passou a ser alvo preferencial da Receita Federal e do CARF. O resultado é um ambiente de elevada insegurança jurídica, em que empresas precisam, mais do que nunca, operar com rigor técnico e estratégia jurídica consistente.

Neste cenário, este artigo analisa — à luz da jurisprudência recente do CARF e dos posicionamentos normativos da Receita — como estruturar modelos contratuais que não apenas resistam ao escrutínio fiscal, mas também sustentem economicamente a racionalidade da terceirização de serviços via PJ.


A erosão da zona cinzenta: quando o CARF sinaliza limite

A jurisprudência do CARF, especialmente nos acórdãos mais recentes das turmas da 2ª Seção de Julgamento, tem reiterado que a utilização de pessoas jurídicas deve ser lastreada em autonomia técnica, econômica e organizacional. O simples fato de a atividade desempenhada pela PJ ser essencial ao core business da contratante não gera, por si só, a descaracterização do contrato. Mas tampouco a afasta se estiverem presentes os fatores de subordinação e dependência econômica, ainda que disfarçados em um CNPJ.

Em decisões paradigmáticas — como o Acórdão nº 1401-007.301, envolvendo a Globo Comunicação e Participações S.A. — o Conselho analisou detidamente a realidade material das contratações, desconsiderando estruturas contratuais formais que não refletiam a efetiva dinâmica da prestação de serviços.

“O critério formal do contrato interempresarial, se dissociado da realidade econômica e funcional da prestação, não é suficiente para afastar o fato gerador das contribuições previdenciárias incidentes sobre remunerações disfarçadas.”
— Trecho adaptado do voto do relator no processo 16682.720034/2019-41


Os três pilares do modelo contratual defensável

Estruturar uma prestação de serviços via PJ não é exercício de redação criativa, mas de engenharia contratual. Um modelo robusto deve se assentar em três pilares fundamentais:

1. Autenticidade Operacional

É imperioso demonstrar que a PJ possui meios próprios para executar sua atividade: estrutura, equipe, recursos, e não apenas uma “formalização” para disfarçar vínculo. Contratos que descrevem autonomia, mas impõem exclusividade, subordinação tácita e controle de jornada são autênticas bombas-relógio.

2. Coerência Documental

Não basta o contrato prever independência: ela precisa estar refletida na troca de e-mails, ordens de serviço, cronogramas, pagamentos. Um modelo defensável se sustenta em evidências documentais coesas com a narrativa contratual.

3. Justificativa Econômica e Estratégica

Por que terceirizar determinada atividade? Qual a lógica econômica por trás da decisão? A ausência de racionalidade de negócio reforça a presunção de fraude ou interposição. Estruturas contratuais frágeis são, na prática, reféns da subjetividade do auditor fiscal.


O papel da Receita: instruções normativas e a tese da interposição fraudulenta

A Receita Federal, embora não detenha o poder de redefinir o conceito de relação de trabalho, atua de forma incisiva quando identifica indícios de simulação ou dissimulação contratual. O foco recai especialmente sobre:

  • PJs uniprofissionais que emitem nota fiscal de forma contínua para um único tomador;

  • Inexistência de empregados, sede física, ou qualquer traço de empresa real;

  • Pagamentos mensais fixos, invariáveis, com previsibilidade típica de salário;

  • Ausência de pluralidade de clientes, indicando dependência econômica absoluta.


Conclusão: mais do que mitigar riscos, construir estratégia

Não se trata de abandonar a contratação via pessoa jurídica, mas de fazê-la com maturidade jurídica, inteligência contratual e clareza estratégica. O ambiente fiscal exige que a empresa opere com ética de estrutura, não apenas com aparência de legalidade.

A nova fronteira da segurança jurídica empresarial está em reconhecer que o contrato é apenas a ponta do iceberg. Sua base precisa estar ancorada na realidade — e essa realidade precisa ser defensável, lógica e documentada.

Em um país onde o CARF julga com lupa e a Receita investiga com retroatividade, não há espaço para improviso. O jurídico empresarial do futuro — e do presente — é aquele que se antecipa, estrutura e blinda.

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Afinal, toda empresa que presta serviço de segurança está no regime cumulativo de PIS/Cofins?
Nem sempre foi assim — mas agora passou a ser. A Solução de Consulta nº 4026, publicada em julho de 2025, oferece a interpretação mais recente e sistematizada da Receita Federal sobre o alcance da Lei nº 14.967/2024, que modificou profundamente o enquadramento tributário de prestadores de serviços relacionados à segurança privada, especialmente aqueles voltados ao monitoramento de sistemas eletrônicos.

Este artigo examina os fundamentos jurídicos, os critérios de incidência e as consequências práticas do novo regime, com base na interpretação consolidada da Receita Federal e da legislação de regência.


Antes da Lei nº 14.967/2024: critério técnico-operacional e vínculo com vigilantes

Até a revogação da Lei nº 7.102/1983, somente empresas especializadas em segurança privada, ou seja, aquelas que atuavam com vigilantes registrados no Departamento de Polícia Federal e com autorização do Ministério da Justiça, estavam obrigadas a recolher PIS e Cofins no regime cumulativo, nos termos do art. 8º da Lei nº 10.637/2002 e do art. 10 da Lei nº 10.833/2003.

Ou seja, a submissão ao regime cumulativo dependia de dois requisitos principais:

  1. Autorização específica para atuar como empresa de segurança privada;

  2. Atuação direta de vigilantes capacitados, conforme requisitos legais (registro no DPF, curso de formação, vínculo empregatício etc.).

Por consequência, empresas que apenas prestavam serviços de monitoramento remoto de alarmes, rastreamento veicular ou operação de sistemas eletrônicos, sem presença de vigilantes, não eram enquadradas como empresas especializadas e podiam adotar o regime não cumulativo, desde que fossem optantes do lucro real.


O que mudou com a Lei nº 14.967/2024?

A Lei nº 14.967, de 9 de setembro de 2024, alterou os incisos I dos artigos 8º e 10 das Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003, ampliando significativamente o escopo das atividades sujeitas ao regime cumulativo.

Passaram a ser incluídas de forma expressa:

“as empresas que prestam serviços de monitoramento de sistemas eletrônicos de segurança e rastreamento de numerário, bens ou valores”.

Com isso, a exigência de registro junto à Polícia Federal e a presença de vigilantes deixou de ser critério delimitador. O que importa agora é a natureza do serviço prestado, independentemente do modelo operacional.


A interpretação da Receita Federal: foco na materialidade do serviço

A Solução de Consulta nº 4026/2025 ratifica essa virada interpretativa: mesmo sem autorização legal como empresa especializada, e mesmo que a atividade seja desenvolvida por meios eletrônicos ou algoritmos de rastreamento, a mera prestação do serviço de monitoramento eletrônico de bens, valores ou pessoas suficientemente caracteriza o enquadramento no regime cumulativo.

O fundamento é claro: o direito tributário se orienta pela substância econômica da atividade, e não por sua forma jurídica. Portanto, mesmo empresas que até então não se viam como parte do setor de segurança privada, mas que operam nesse novo rol legal, passam a ser tratadas como contribuintes do regime cumulativo.


Quais empresas estão afetadas?

Estão alcançadas pela nova redação legal e pela interpretação da Receita:

  • Empresas que prestam serviços de monitoramento eletrônico remoto (como centrais de alarme, câmeras e sensores);

  • Prestadoras de rastreabilidade de numerário, bens ou valores, inclusive aquelas que operam com telemetria veicular e dispositivos georreferenciados;

  • Companhias que atuam em sistemas integrados de segurança sem atuação de vigilantes armados.

Importante: a Receita não exige autorização formal nem registro na Polícia Federal para a caracterização do regime cumulativo. A realização do serviço é suficiente para atrair a incidência.


Efeitos práticos: aumento de carga tributária e necessidade de reenquadramento

A mudança de regime implica impacto direto sobre a carga tributária:

  • O regime cumulativo possui alíquotas de 0,65% (PIS) e 3% (Cofins), sem direito a créditos;

  • Já o regime não cumulativo, com alíquotas de 1,65% (PIS) e 7,6% (Cofins), permite a apuração de créditos sobre insumos e despesas.

Empresas que operavam com margens baixas e baseadas em economia de escala, muitas vezes com grande volume de equipamentos, software e tecnologia contratada de terceiros, podem perder eficiência fiscal com a vedação dos créditos.


O que fazer? Recomendações jurídicas e estratégicas

  1. Revisão contratual e societária: verificar se a atividade-fim descrita no contrato social corresponde às hipóteses da Lei nº 14.967/2024.

  2. Avaliação de regime tributário: empresas no lucro real devem considerar a viabilidade de migrar para o lucro presumido, caso o novo enquadramento inviabilize a apuração de créditos e eleve o custo efetivo.

  3. Retrospectiva tributária: a Receita admite que a nova interpretação só tem efeitos para fatos geradores ocorridos após a sua publicação, o que resguarda a segurança jurídica para o passado — mas requer ajuste imediato da conduta para o futuro.

  4. Atualização cadastral: rever o CNAE, a Classificação Fiscal de Serviços (LC 116/2003) e os documentos fiscais, sob pena de autuações e glosas de crédito por inconsistência entre atividade exercida e regime tributário.


Conclusão

A linha que separava tecnologia e segurança foi redesenhada pela legislação de 2024. O que antes dependia da atuação de vigilantes e da autorização formal passou a depender exclusivamente do tipo de serviço prestado.

Monitorar remotamente é, agora, tributar cumulativamente. E, para quem atua no setor, o tempo de ajuste é agora.