A engenharia jurídica por trás das holdings familiares tem ganhado crescente sofisticação. Estruturas patrimoniais antes operadas com discrição agora se veem desafiadas a conjugar estratégia e conformidade, sobretudo quando mecanismos como a distribuição desproporcional de lucros entram em cena. A recente jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo reacendeu um alerta crucial: em certos contextos, esse tipo de distribuição pode ser interpretado como uma doação disfarçada, incidindo, portanto, o ITCMD.
O ponto de partida para a análise é o artigo 1.007 do Código Civil, que estabelece a regra proporcional de participação dos sócios nos lucros e perdas, salvo estipulação contratual em contrário. Ou seja, a lei autoriza expressamente a possibilidade de distribuição desproporcional de lucros – desde que prevista no contrato social. Mas essa previsão, por si só, não basta.
O caso paradigmático julgado pelo TJ-SP em fevereiro de 2025 envolve uma sociedade limitada familiar que distribuiu mais de R$ 24 milhões em lucros majoritariamente aos filhos dos controladores, que, à época, detinham apenas 1% cada do capital social. A distribuição, embora prevista contratualmente, não foi acompanhada de uma justificativa negocial robusta. Resultado: o Fisco estadual requalificou a operação como doação, exigindo o recolhimento do ITCMD.
Entre a liberalidade e o propósito negocial
Essa decisão evidencia uma tensão latente entre o princípio da autonomia da vontade dos sócios e o poder de fiscalização tributária. Segundo o entendimento da Secretaria da Fazenda e reiterado pelo TJ-SP, o que afasta a incidência do ITCMD é a presença de um propósito negocial legítimo, não a simples liberdade contratual. Sem demonstração concreta de interesse empresarial, a operação pode ser desconsiderada como distribuição e tratada como liberalidade – em outras palavras, como doação.
O que está em jogo não é a legalidade da distribuição desproporcional de lucros, mas sua finalidade. Quando a prática serve como mecanismo velado de antecipação da herança ou reorganização patrimonial sem o devido recolhimento de tributos, ela perde seu amparo jurídico e torna-se vulnerável à autuação.
Cuidados e recomendações para empresas familiares
Para que a distribuição desproporcional de lucros se mantenha em território seguro, algumas providências se mostram essenciais:
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Previsão expressa e clara no contrato social ou estatuto autorizando essa possibilidade;
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Formalização das decisões societárias mediante atas de reunião ou assembleia que expliquem, em linguagem clara, os motivos da distribuição diferenciada;
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Acordos de sócios bem estruturados, capazes de registrar compromissos e alinhar expectativas;
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Documentação comprobatória de contribuição diferenciada dos sócios beneficiados, como dedicação exclusiva, captação de negócios, atuação estratégica, entre outros.
Esses cuidados se tornam ainda mais importantes diante da tendência de maior controle fiscal e do histórico de tentativas legislativas – como o PLP 108/2024 – de vincular a distribuição desproporcional ao fato gerador do ITCMD, mesmo que esse dispositivo tenha sido excluído da versão final da proposta.
A distribuição desproporcional como instrumento legítimo
Longe de ser um vilão, o instrumento pode ser fundamental na dinâmica de empresas inovadoras, especialmente aquelas que envolvem sócios com diferentes perfis de contribuição – intelectual, financeira ou operacional. O que se exige, no entanto, é transparência, documentação e coerência negocial.
Conclusão
A jurisprudência atual e os sinais vindos do legislador reforçam a importância da atuação preventiva. As holdings familiares que desejam utilizar a distribuição desproporcional de lucros como ferramenta de gestão ou sucessão precisam fazê-lo com lastro jurídico adequado, amparadas em evidências que demonstrem a racionalidade empresarial da operação.
No fim, a pergunta que deve guiar cada decisão não é “posso?”, mas sim “por que estou fazendo isso desta forma?”. A resposta – bem fundamentada, registrada e coerente – será sempre o melhor escudo contra interpretações fiscais adversas.