
Em um sistema tributário de alta complexidade e pesada carga fiscal, planejar tributos não é apenas lícito — é racional. A doutrina, a jurisprudência e até mesmo a própria Receita Federal reconhecem que a elisão fiscal, quando praticada dentro dos limites legais, é um exercício legítimo da autonomia privada.
No entanto, esse mesmo ambiente de complexidade oferece o terreno fértil para uma zona cinzenta: o ponto exato em que o planejamento deixa de ser lícito para se tornar abusivo. É nesse limiar que atua o conceito — ainda instável — de abuso de forma, constantemente invocado pelo fisco para desconstituir estruturas empresariais e negar eficácia a planejamentos tributários.
Não há, sob o ponto de vista normativo, dúvida sobre a licitude do planejamento tributário. O próprio Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 116, parágrafo único (com redação dada pela LC 104/2001), reconhece que o sujeito passivo pode organizar seus negócios de modo menos oneroso, desde que não incorra em simulação ou dissimulação.
Diferentemente da evasão — que é a supressão ilícita do tributo, mediante fraude, erro, omissão ou falsidade —, a elisão consiste na organização lícita da atividade com vistas à economia fiscal, por meio da escolha de atos ou negócios jurídicos permitidos em lei, ainda que visando reduzir, retardar ou evitar a incidência tributária.
Mas o problema jurídico começa quando a forma prevalece sobre a substância. Ou seja: quando se criam estruturas artificiais, sem propósito negocial autêntico, apenas para alcançar uma economia fiscal indevida.
A Receita Federal, amparada no art. 116, parágrafo único do CTN, tem sustentado que a forma jurídica dos atos deve corresponder à sua substância econômica. Assim, operações que aparentam uma finalidade negocial, mas que na prática só servem à redução tributária, podem ser desconsideradas.
É o caso clássico de:
Empresas interpostas sem substância operacional;
Transformações societárias artificiais, feitas apenas para migrar de regime fiscal;
Planejamentos sucessórios com blindagem patrimonial simulada, sem causa ou contraprestação;
Segregações de atividades (verticalizações/desverticalizações) que não alteram a realidade operacional, mas apenas fragmentam a base tributável.
O que a Receita tem chamado de abuso de forma ou planejamento abusivo é justamente essa prática de esvaziar o conteúdo econômico da operação, valendo-se da autonomia privada apenas como meio formal para alcançar uma economia fiscal ilegítima.
A Receita Federal tem utilizado três grandes instrumentos para desconsiderar planejamentos que julga abusivos:
Art. 116, parágrafo único do CTN: autoriza a desconsideração de atos ou negócios jurídicos quando praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária;
Art. 187 do CTN e art. 9º do Decreto 70.235/1972: permitem a requalificação da natureza jurídica dos atos, para fins de lançamento tributário, quando constatada simulação;
Normas específicas antielisão setorial (como nos casos de juros sobre capital próprio, ágio interno ou reorganizações societárias): frequentemente aplicadas com fundamento em jurisprudência administrativa e pareceres normativos da PGFN e da Cosit.
Além disso, decisões recentes do CARF e da PGFN vêm reforçando a tendência de se exigir propósito negocial comprovado, ainda que o ato em si seja formalmente válido. A exigência de substância econômica (substance over form) passa a ser o novo critério material de validade tributária.
Se, por um lado, é fundamental coibir simulações, por outro, a expansão do conceito de abuso pode levar ao colapso do princípio da legalidade tributária. A utilização indistinta de termos como “planejamento abusivo”, “simulação relativa” ou “reorganização sem propósito negocial” tem, por vezes, servido como fundamento genérico para autuações baseadas em interpretações subjetivas.
Essa elasticidade interpretativa fragiliza o ambiente de negócios. Ao não haver critérios objetivos para distinguir a elisão lícita da elisão abusiva, o contribuinte se vê à mercê de requalificações retroativas e de insegurança jurídica generalizada.
O desafio, portanto, é duplo:
De um lado, coibir estruturas artificiais que esvaziam a base de cálculo tributária;
De outro, garantir a liberdade de organização empresarial e o uso legítimo de instrumentos jurídicos reconhecidos em lei.
Planejar tributos não é pecado. É estratégia legítima de qualquer organização que busca eficiência e racionalidade econômica. Mas essa estratégia precisa ser lastreada por propósito negocial autêntico, substância operacional real e coerência jurídica entre meios e fins.
O papel do jurista — e, por extensão, do advogado tributarista — não é apenas redigir estruturas formalmente válidas, mas compreender a racionalidade da operação, a narrativa contábil-financeira por trás do planejamento e os limites que o ordenamento impõe à autonomia privada em matéria tributária.
A Receita Federal, cada vez mais equipada com inteligência fiscal, cruzamento de dados e jurisprudência interna consolidada, não tolera mais planejamentos genéricos, descolados da lógica econômica.
O caminho, portanto, não é fugir da fiscalização, mas sim estruturar com inteligência, propósito e substância. A elisão lícita permanece como ferramenta legítima — desde que praticada com responsabilidade técnica e fundamento jurídico robusto.