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Entre a roleta fiscal e o dever de canalizar: desafios da tributação sobre as apostas digitais no Brasil

17/07/2025

Guilherme Chambarelli

Há momentos em que a política tributária deixa de ser um mecanismo de arrecadação e passa a flertar com o desatino. A recente experiência brasileira com a regulamentação das apostas online talvez ilustre com rara nitidez essa transição.

Desde o início do ano, o país ingressou, formalmente, no seleto grupo de nações que optaram por regular o mercado de apostas de quota fixa, oferecendo segurança jurídica a operadores e arrecadação ao Estado. Mais de uma centena de empresas já recebeu aval para operar. Estima-se que o Brasil possa se tornar, em poucos anos, o terceiro maior mercado do mundo no setor, movimentando cifras bilionárias. Mas a promessa de prosperidade traz consigo um risco: a sanha arrecadatória.

O ambiente tributário desenhado até aqui beira a excentricidade. O operador legal enfrenta uma incidência que começa com 12% sobre o chamado GGR (gross gaming revenue), passa por IRPJ e CSLL, soma PIS, Cofins e ISS, e ainda se depara com taxas de fiscalização e novas propostas de majoração – como a MP nº 1.303/2025, que pretende elevar o GGR a 18%. Se aprovadas as mudanças, a carga total poderá superar 60% da receita bruta. Não é exagero afirmar que esse percentual coloca o jogo legal em desvantagem frente à informalidade.

E esse não é um problema teórico. Segundo levantamento recente, algo entre 41% e 51% do mercado brasileiro opera na clandestinidade. Estamos falando de uma evasão superior a R$ 10 bilhões por ano. Ou seja, mais do que um dilema técnico, há um dilema estratégico: a tributação desenhada para o setor precisa canalizar, e não repelir. O modelo atual, ao tentar maximizar a arrecadação sobre uma base frágil e mal compreendida, pode estar empurrando o contribuinte para o escuro.

Essa distorção se acentua quando nos aproximamos das bases de cálculo dos tributos incidentes. O conceito de “receita”, para fins de PIS e Cofins, tem sido objeto de longa controvérsia. O Supremo Tribunal Federal já deixou claro que não basta a entrada de recursos no caixa – é preciso que haja, efetivamente, um acréscimo patrimonial. Quando uma casa de apostas concede bônus, apostas grátis ou distribui créditos promocionais, esses valores não se incorporam ao patrimônio da empresa. São instrumentos de fidelização, não riqueza. Tributá-los seria o mesmo que exigir imposto sobre brindes.

O mesmo raciocínio se aplica ao ISS. Ainda que se trate de um tributo sobre serviços, não há cobrança direta ao usuário por cada aposta realizada. A remuneração da plataforma é, em essência, o resíduo da operação: o que sobra após pagamento de prêmios e outras deduções. E nesse ponto, é curioso notar que o Município de São Paulo já reconheceu a necessidade de excluir da base de cálculo do ISS os valores destinados a terceiros. Um raciocínio simples, mas muitas vezes negligenciado: não se tributa aquilo que não pertence.

A reforma tributária em curso — que institui novos tributos como CBS e IBS, e ainda prevê um Imposto Seletivo — insinua um avanço. Prevê, ao menos para os concursos de prognósticos, uma base de cálculo que desconta os prêmios pagos e as obrigações legais do operador. Trata-se de um passo tímido, mas na direção certa: reconhecer que a tributação deve recair sobre a riqueza efetiva gerada, e não sobre fluxos ilusórios.

A discussão, por fim, atinge o plano constitucional quando se cogita aplicar o Imposto Seletivo sobre atividades de apostas. O imposto, nos termos da Constituição, destina-se a onerar bens e serviços que causem dano à saúde ou ao meio ambiente. Apostar, em si, não se equipara a fumar ou poluir. Embora haja riscos sociais envolvidos — como vício e superendividamento —, há uma diferença substancial entre um mal em si mesmo e uma atividade lícita que pode demandar regulação protetiva. Aqui, o uso do Imposto Seletivo pode ser mais uma expressão de oportunismo fiscal do que de coerência normativa.

Regulamentar apostas é, portanto, mais do que criar regras: é escolher entre a canalização e a marginalização. Tributar é exercer poder, mas também é assumir responsabilidade. Um sistema que pune o operador legal com tributos excessivos, ao mesmo tempo em que ignora o mercado ilícito, comete um erro duplo: desestimula quem quer cumprir a lei e perpetua a informalidade.

No fim, o verdadeiro jogo em curso não é entre apostadores e casas de apostas. É entre o Estado e a lógica. E, nesse tabuleiro, quem erra o cálculo tributário pode perder muito mais do que receita. Pode perder o próprio controle do mercado.

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