
Na dinâmica e desafiadora jornada das startups, a liberdade contratual é frequentemente celebrada como um dos pilares da inovação. Mas até que ponto essa liberdade pode — ou deve — ir?
Nosso sócio Guilherme Chambarelli acaba de publicar no JOTA o artigo “Distribuição desproporcional de lucros em startups: capital, dedicação e os limites da liberdade contratual”. Nele, explora-se um dos temas mais sensíveis na estruturação de negócios inovadores: como alinhar investimentos e expectativas entre sócios com diferentes graus de contribuição e risco.
Um texto que convida à reflexão sobre os mecanismos contratuais que sustentam — ou fragilizam — a governança societária em ambientes empreendedores.
Muito se discute sobre os instrumentos jurídicos que permitem, em uma sociedade limitada, alinhar os incentivos de seus sócios à realidade negocial da empresa. No ecossistema das startups, onde o capital intelectual e a dedicação pessoal frequentemente superam, em importância, o capital financeiro aportado, uma cláusula desperta especial atenção: a que autoriza a distribuição desproporcional de lucros.
O ponto de partida para essa análise é o artigo 1.007 do Código Civil, segundo o qual salvo estipulação em contrário, os lucros serão distribuídos na proporção das quotas do capital social. Essa disposição, ao mesmo tempo que consagra a regra geral da proporcionalidade, abre margem para exceções negociadas entre os sócios, desde que constem do contrato social e acordo de sócios.
No ambiente das startups, essa exceção ganha especial relevância. E não apenas por razões teóricas. O que se vê na prática é que, mesmo entre sócios com participações societárias iguais, há contribuições profundamente assimétricas. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não reconheça, nas sociedades empresárias, a figura do “sócio de serviço” (art. 1.055, § 2º, CC), o cotidiano empreendedor frequentemente ignora essa premissa.
Não é raro encontrar estruturas societárias em que um dos sócios aporta capital financeiro, enquanto o outro entrega tempo, expertise e dedicação exclusiva ao desenvolvimento do produto, à gestão da equipe e à execução da estratégia comercial.
Também não é incomum que investidores-anjo assumam riscos financeiros elevados em rodadas de pré-operacionalização e, por isso, esperem – além da valorização futura das quotas – uma participação diferenciada nos lucros de curto prazo. Tudo isso demanda arranjos que extravasem a rigidez da proporcionalidade.
O desafio, no entanto, não está apenas em autorizar contratualmente a distribuição desproporcional. O ponto mais delicado é garantir que esse mecanismo seja compreendido – e respeitado – como reflexo de uma lógica econômica legítima, e não como instrumento de liberalidade encoberta.
Esse risco ganhou contornos concretos recentemente. Em fevereiro de 2025, a 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo analisou um caso emblemático (Apelação Cível 1087688-18.2023.8.26.0053), envolvendo a distribuição de lucros a sócios minoritários que, apesar de deterem apenas 2% das quotas, receberam mais de 90% dos resultados.
Embora o contrato social previsse essa possibilidade, o tribunal entendeu que, diante da ausência de justificativa negocial compatível com tal desproporcionalidade, a operação configuraria uma doação disfarçada – e, portanto, estaria sujeita à incidência do ITCMD.
O acórdão não negou a validade da cláusula em si, tampouco a legalidade da distribuição desproporcional. O que se questionou foi o “porquê”. Em outras palavras, o tribunal reconheceu o espaço da liberdade contratual, mas estabeleceu um limite: o da finalidade econômica legítima.
É nesse cenário que a Lei Complementar 182/2021, o Marco Legal das Startups, oferece um novo ângulo à discussão. A norma introduziu, no artigo 294 da Lei das S.A., a possibilidade de que sociedades anônimas enquadradas como startups (com faturamento anual de até R$ 78 milhões) adotem modelos simplificados de governança, inclusive quanto à distribuição de dividendos.
Apesar de a redação legal não tratar expressamente da distribuição desproporcional, parte da doutrina passou a sustentar que, diante da omissão do estatuto, os acionistas poderiam deliberar livremente sobre a forma de repartir os lucros – inclusive com base em critérios de desempenho ou dedicação. Essa leitura, contudo, ainda é alvo de controvérsia. Outra corrente defende que a flexibilização prevista se restringe à definição dos dividendos mínimos obrigatórios, não autorizando, por si só, a desproporcionalidade.
Enquanto essa tensão interpretativa não é pacificada, a sociedade limitada permanece como o veículo preferencial para startups que desejam empregar, com segurança jurídica, a distribuição desproporcional de lucros.
Independentemente da forma societária adotada, o que se impõe é a necessidade de concretude negocial. A distribuição desproporcional precisa estar respaldada por fatos: maior dedicação de um sócio; superação de metas pré-definidas; aportes estratégicos que viabilizaram a operação; assunção de riscos que os demais não enfrentaram.
Para isso, recomenda-se:
No universo das startups, em que o valor gerado frequentemente ultrapassa o capital subscrito, a distribuição desproporcional de lucros não é apenas juridicamente possível – é economicamente razoável. Mas essa liberdade, como toda liberdade no Direito, encontra seus limites na boa-fé, na transparência e na demonstração de finalidade negocial legítima.
Não se trata, portanto, de vedar a distribuição desproporcional, mas de exigir que ela seja o que afirma ser: um reflexo justo da contribuição de cada sócio para os resultados da sociedade, e não um atalho para antecipação de riqueza ou reorganização patrimonial informal.
Porque, ao fim e ao cabo, no Direito Societário – como na vida – as formas importam, mas os propósitos revelam.