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Lucro Real e Lucro Presumido: Mesma sócia, mesmo objeto, regimes diferentes?

29/06/2025

Guilherme Chambarelli

A Solução de Consulta Cosit nº 72, publicada em abril de 2025, traz nova camada de densidade interpretativa ao debate sobre a compatibilidade entre o regime de lucro presumido e a existência de vínculos societários e operacionais entre empresas do mesmo grupo econômico. No centro da questão está um ponto de tensão recorrente: até que ponto a autonomia formal das pessoas jurídicas prevalece sobre os elementos materiais que indicam identidade substancial entre empresas?

A consulente, cuja totalidade das quotas foi adquirida por uma sociedade optante do lucro real e que exerce exatamente as mesmas atividades, questiona se pode manter-se no regime do lucro presumido. A resposta da Receita é, como de praxe, condicional: pode, desde que haja efetiva independência operacional, administrativa e patrimonial. Caso contrário, as empresas serão tratadas como uma só – com implicações diretas na centralização da apuração do IRPJ e na obrigatoriedade de adoção do mesmo regime tributário.

A dicotomia entre forma e substância

O ponto central da análise é a distinção entre duas figuras: o grupo econômico legítimo e o grupo econômico irregular. O primeiro decorre da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976, especialmente seus Capítulos XX e XXI), admitindo múltiplas pessoas jurídicas com relações societárias entre si, mas que preservam independência funcional. O segundo, por outro lado, caracteriza-se pela existência de uma só estrutura econômica que, sob o manto de diversas pessoas jurídicas, atua de forma integrada, com confusão patrimonial, identidade de direção e operação e, frequentemente, finalidade de planejamento tributário abusivo.

A Receita recorre ao Parecer Normativo COSIT nº 4/2018 para enfatizar que a mera identidade de objeto social, de quadro societário ou mesmo de marca não basta para descaracterizar a autonomia jurídica das empresas. É preciso algo mais – a prova de que, apesar das aparências, há um só centro de decisão e uma só unidade empresarial, ainda que formalmente repartida em múltiplos CNPJs.

Critérios de distinção e risco de enquadramento

A Solução de Consulta destaca, com precisão, os critérios que afastam a obrigatoriedade de unificação da apuração do IRPJ:

  • Autonomia administrativa: as decisões estratégicas são tomadas de forma independente;

  • Autonomia operacional: as atividades produtivas e comerciais não se confundem;

  • Autonomia patrimonial: não há comunhão informal de recursos, bens ou receitas;

  • Localização geográfica diversa e atuação sob marcas próprias.

Na hipótese em que esses elementos estiverem efetivamente presentes – e demonstráveis em eventual fiscalização – a empresa adquirida poderá permanecer no lucro presumido, independentemente do regime tributário da controladora. Aqui reside um ponto jurídico crucial: o regime tributário é próprio a cada pessoa jurídica e não se transmite por simples relação societária.

Contudo, se restar caracterizado que ambas operam como uma só empresa fática, mesmo com CNPJs distintos, incidirá o disposto na legislação do IRPJ que impõe apuração centralizada e adoção compulsória do lucro real – especialmente quando as atividades alcançam patamares de receita bruta acima do limite legal do art. 587 do RIR/2018 (R$ 78 milhões ao ano).

Planejamento lícito versus simulação

É legítimo estruturar um grupo empresarial com múltiplas pessoas jurídicas, desde que cada uma desempenhe função autônoma e real. No entanto, quando essa multiplicidade de CNPJs serve apenas como cortina formal para fragmentar artificialmente receitas, pulverizar lucros ou manipular bases de cálculo, o Fisco poderá, mediante fiscalização, desconsiderar as personalidades jurídicas envolvidas.

Nesse contexto, a Receita reforça que o que está em jogo não é a mera titularidade das quotas ou o compartilhamento de endereço – mas sim a substância da atuação empresarial conjunta, o liame de direção única, a comunhão informal de operações e o desvio das finalidades jurídicas dos institutos societários.

A jurisprudência do STJ citada na solução de consulta (EDcl no REsp 1.209.029/SP) respalda essa posição, ao admitir a responsabilização solidária por confusão patrimonial entre empresas do mesmo grupo que, embora juridicamente distintas, operam como se fossem uma só.

Conclusão: o formalismo não é escudo para simulação

A Solução de Consulta COSIT nº 72/2025 reafirma um dos vetores mais consistentes da jurisprudência administrativa e judicial contemporânea: o princípio da primazia da realidade. O contribuinte pode optar pelo regime do lucro presumido desde que preencha os requisitos legais e sua estrutura seja genuinamente segregada, mesmo que integrada a um grupo econômico. Mas não pode escudar-se na personalidade jurídica para praticar planejamento tributário abusivo, especialmente quando há identidade de comando e confusão operacional.

À luz desse entendimento, empresas que pretendem manter estruturas societárias paralelas com diferentes regimes de tributação devem garantir, com robustez documental e operacional, a efetiva independência entre suas unidades. O risco de requalificação, ainda que remoto em sede de consulta, permanece latente em eventual fiscalização – e, mais grave, pode repercutir em autuações por simulação, infração ao art. 123 do CTN e até distribuição disfarçada de lucros.

No fim das contas, a pergunta não é apenas “quem é o sócio?”, mas “quem realmente toma as decisões?”. E é essa resposta, prática e concreta, que determinará o enquadramento fiscal.

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